quarta-feira, 11 de março de 2009

AFRICANIDADES BRASILEIRAS

Esclarecendo significados e definindo procedimentos pedagógicos

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

A expressão africanidades brasileiras refere-se às raízes da cultura brasileira que têm origem africana. dizendo de outra forma, queremos nos reportar ao modo de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia.
Possivelmente, alguns pensem: Realmente, é verdade o que vem de ser dito, pois todos nós comemos feijoada, cantamos e dançamos samba e alguns freqüentamos academia de capoeira. E isto, sem dúvidas, é influência africana. De fato o é, mas há que completar o pensamento, vislumbrando os múltiplos significados que impregnam cada uma destas manifestações. Feijoada, samba, capoeira resultaram de criações dos africanos que vieram escravizados para o Brasil e de seus descendentes e representam formas encontradas para sobreviver, para expressar um jeito de construir a vida, de senti-la, de vivê-la. Assim, uma receita de feijoada, de vatapá ou de qualquer outro prato contém mais do que a combinação de ingredientes: é o retrato de busca de soluções para manutenção da vida física, de lembrança dos sabores da terra de origem. A capoeira, hoje um jogo que promove o equilíbrio do corpo e do espírito pelo seu cultivo, nasceu como instrumento o de combate, de defesa.
Africanidades brasileiras, pois, ultrapassam o dado ou o evento material, como um prato de sarapatel, uma apresentação de rap. Elas se constituem nos processos que geraram tais dados e eventos, hoje incorporados pela sociedade brasileiras. Elas se constituem também dos valores que motivaram tais processos e deles resultaram. Então, estudar Africanidades Brasileiras significa estudar um jeito de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e lutar por sua dignidade, próprio dos descendentes de africanos que, ao participar da construção da nação brasileira, vão deixando nos outros grupos étnicos com que convivem suas influências, e, ao mesmo tempo, recebem e incorporam as daqueles.

COM QUE FINALIDADES ESTUDAR AFRICANIDADES BRASILEIRAS?
Muitas são as finalidades por que devemos incluir Africanidades Brasileiras no currículo escolar. Por exemplo:
· ensinar e aprender como os descendentes de africanos vêm, nos mais de quinhentos anos de Brasil, construindo suas vidas e suas histórias, no interior do seu grupo étnico e no convívio com outros grupos;
· conhecer e aprender a respeitar as expressões culturais negras que compõem a história e a vida de nosso país, mas, no entanto, são pouco valorizadas;
· compreender e respeitar diferentes modos de ser, viver, conviver e pensar;
· discutir as relações étnicas, no Brasil, e analisar a perversidade da assim designada democracia racial;
· refazer concepções relativas à população negra, forjadas com base em preconceitos.

PROPONDO ENCAMINHAMENTOS
Schenetzier dá-nos importantes indicações. A aprendizagem, diz ela, consiste em reorganização e desenvolvimento das concepções dos dos alunos; implica, pois, mudança conceitual. Embora referindo-se a conhecimentos prévios em Química, a afirmativa da autora também diz respeito à aprendizagem em todas as outras áreas do conhecimento. Calcule-se o valor desse entendimento quando são tratados conteúdos pouco valorizados pela sociedade ,quando, ao ensiná-los,pretende-se apagar preconceitos,corrigir idéias , atitudes forjadas com base nas destruidoras ideologias do racismo, do branqueamento. Schenetzier, citando Andersen, pondera que ensinar implica, entre outras coisas, busca de estratégias úteis para proceder à mudança conceitual. Para tanto, os professores deveriam:
· buscar conhecer as concepções prévias de seus alunos a respeito do estudado, ouvindo-os falar sobre elas;
· ajudar os alunos a compreender que ninguém constrói sozinho as concepções a respeito de fatos, fenômenos, pessoas; que as concepções resultam do que ouvimos outras pessoas dizerem, resultam também de nossas observações e estudos;
· lançar desafios para que seus alunos ampliem e/ou reformulem suas concepções prévias, incentivando-os a pesquisar, debater, trocar idéias, argumentando com idéias e dados;
· incentivar a observação da vida cotidiana, observações no contexto da sala de aula, a elaboração de conclusões, a comparação entre concepções, construídas tanto a partir do senso comum como a partir do estudo sistemático.
Em se tratando de Africanidades Brasileiras, é preciso acrescentar que:
· de acordo com Silva, deveriam combater os próprios preconceitos, os gestos de discriminação tão fortemente enraizadas na personalidade dos brasileiros, desejando sinceramente superar sua ignorância relativamente à história e à cultura dos brasileiros descendentes de africanos;
· organizar seus planos de trabalho, as atividades para seus alunos, tendo presente o ensinamento de Lopes de que na cultura de origem africana só tem totalmente sentido o que for aprendido pela ação, isto é, se, no ato de aprender, o aprendiz executar tarefas que o levem a pôr a mão na massa, sempre informado e apoiado pelos mais experientes. Dizendo de outra maneira, aprender-se realmente o que se vive e muito pouco sobre o que se ouve falar.
AFRICANIDADES BRASILEIRAS: UMA NOVA ÁREA DE CONHECIMENTO?
Não necessariamente. Estudos já realizados apontam para uma área interdisciplinar, melhor dizendo, todas as áreas do conhecimento a compõem, desde que abordadas sem perder a perspectiva da cultura e da história dos povos africanos ou deles descendentes.
As Africanidades Brasileiras, no que diz respeito ao processo ensino-aprendizagem, conduzem a uma pedagogia anti-racista, cujos princípios são:
· RESPEITO, entendido não como mera tolerância, mas como diálogo em que seres humanos diferentes miram-se uns aos outros, sem sentimentos de superioridade ou de inferioridade;
· RECONSTRUÇÃO DO DISCURSO PEDAGÓGICO, no sentido de que a escola venha a participar do processo de resistência dos grupos e classes postos à margem bem como contribuir para a afirmação da sua identidade e de sua cidadania;
· ESTUDO DA RECRIAÇÃO DAS DIFERENTES RAÍZES DA CULTURA BRASILEIRA, que nos encontros e desencontros de umas com as outras se fizeram e hoje não são mais gegê, nagô, bantu, portuguesa, japonesa, italiana, alemã, mas brasileira de origem africana, européia, asiática.
As Africanidades Brasileiras abrangem diferentes aspectos, não precisam, por isso, constituir-se numa única área, pois podem estar presentes em conteúdos e metodologias, nas diferentes áreas de conhecimento constitutivas do currículo escolar. Vejamos alguns exemplos:
Ø Música e dança – Do ponto de vista das africanidades Brasileiras, não tem cabimento a musicalização de crianças, adolescentes e adultos que não inclua os ritmos de origem africana. E, do mesmo ponto de vista, não bastará ouvir textos musicais e reconhecer instrumentos típicos. Será preciso ouvir e fazer tentativas de tirar som e ritmo de instrumentos típicos: caixa de fósforo, pandeiro, agogô, chocalho, atabaque, berimbau, etc. com auxílio de quem sabe fazê-lo. E não basta saber tocar instrumentos, é importante saber de são feitos, como são feitos e, sempre que possível, aprender a construir, pelo menos, alguns deles. Mais ainda, as músicas de origem africana são feitas para serem ouvidas e dançadas. Por tanto, ensinar música afro, na perspectiva das Africanidades, implica ouvir, produzir ritmos, construir instrumentos, as recriações que eles têm sofrido através dos tempos e os lugares por onde têm passado e se enraizado.
Ø Matemática – Ao desenvolver conteúdos de matemática, se o professor estiver atento às Africanidades Brasileiras, poderá valer-se, certamente, de obras, ainda raras entre nós, que mostram construções matemáticas africanas de diferentes culturas. Com isso, os alunos irão aprendendo diferentes caminhos trilhados pela humanidade, através de povos de diferentes culturas, para a construção dos conhecimentos que vêm acumulando.
Ø Psicologia – Esta área de conhecimento trata de importantes descobertas científicas a respeito do comportamento das pessoas, das maneiras como elas se relacionam entre si. No Brasil, assim como em outros países de fortes raízes africanas, em qualquer nível de ensino, torna-se inadmissível desconhecer as obras de Franz Fanon, pelo menos Pele Negra, Máscaras Brancas(...) que analisa e discute as dificuldades enfrentadas por descendentes de africanos, para terem sua identidade respeitada, enquanto tias, num colonizado por europeus. No nosso caso específico, não há como desconhecer a obra de Neuza Santos Souza, Tornar-se negro.
Ø Sociologia – Fonte chave para estudos que tenham preocupação com as Africanidades Brasileiras é certamente a obra de Clovis Moura, salientando-se Sociologia do Negro Brasileiro, em que aborda a sociedade brasileira, a partir de estudos sobre a problemática que envolve o povo negro.
Ø Educação Física – Na medida em que esta área de conhecimento, ao dedicar-se ao estudo do corpo, incluir dança, seria incompreensível, no Brasil, deixar de haver sessões de danças de raízes africanas. E, na área de jogos, de se jogar capoeira.
Ø História – A História do Brasil, enquanto construção de uma nação, inclui todos os povos que a constituem. Assim, ignorar a história dos povos que a constituem. Assim, ignorar a história dos povos indígenas, do povo negro é estudar de forma incompleta a história brasileira. Por exemplo, o professor que trabalha na perspectiva das africanidades Brasileiras não omitirá, ao tratar da fundação de Laguna, em Santa Catarina, que, conforme registra Cláudio Moreira Bento em O Negro, a expedição que lá se instalou em 1648 era formada, em 70%, por homens negros escravizados. Ao referir a fundação da Colônia de Sacramento, não esquecerá de fazer saber que, além dos escravos, a tropa fundadora contava com soldados negros. Se a história ensinada na escola souber contemplar, também, a vida vivida no dia a dia, pelos grupos menosprezados pela sociedade, então estaremos ensinado-aprendendo a história brasileira integralmente realizada. Conforme o entendimento de Gigante, a valorização da história dos grupos populares, registrando o que em suas memórias está guardado de suas experiências, é tarefa que pode ser realizada por professores e alunos, a partir da comunidade em que a escola está inserida. Desta forma, poderá o autor, todos os que constroem o Brasil estarão presentes nos conteúdos escolares.
Ø Literatura e Língua Portuguesa – Poderá envolver pessoas da comunidade que têm o gosto de colaborar com a escola. As histórias colhidas pelos alunos são transformadas em textos que poderão ser reunidos num livro e, desta forma, serem divulgados entre outras classes e também na comunidade. Os professores, juntamente com os alunos, decidem o que perguntar, que histórias pedir para as pessoas da comunidade negra contar: histórias de brincadeiras, de trabalho, de festejos, de celebração religiosas, da vida na escola, etc.



FONTE:
REVISTA DO PROFESSOR – Porto Alegre - Janeiro a março de 2003 – vol. 19 – nº.73 – Editora CPOEC
p 26 – 30

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