sábado, 2 de outubro de 2010

Os negros como sujeitos da sua própria história: um desafio para a escola e para as políticas públicas de educação ...Nilma Lino Gomes

Sabemos que, durante o regime escravista, várias foram as invenções e recriações realizadas pelos africanos escravizados, no sentido de romper com o processo de coisificação social a eles imposto. As transgressões, os abortos, os assassinatos de senhores, as fugas, o culto aos ancestrais, a estética, a medicina natural foram ações desencadeadas pelos africanos escravizados e provam quanto essa coisificação não foi totalmente introjetada e realizada. Essas ações dos negros do passado desafiavam o caráter despótico do sistema escravista em seu propósito de se estabelecer como referencial único e exclusivo.

Hoje, apesar dos tempos neoliberais e da situação de exclusão social que afligem a população negra e pobre deste país, a cultura hip-hop, as comunidades-terreiro, as irmandades, as congadas, a capoeira, os penteados afros, a estética negra, a arte, a luta dos movimentos sociais, as comunidades de bairro podem ser considerados como formas contemporâneas de resistência negra, no Brasil, construídas num intenso processo de recriação e ressignificação de elementos culturais africanos na experiência da diáspora e, mais particularmente, na experiência brasileira.

Por tudo isso, a articulação entre educação e identidade negra vai exigir de nós mais do que leituras, pesquisas e discursos elaborados: exigirá análises, novos posicionamentos e posturas por parte de professores e professoras negros e brancos, tanto da educação básica quanto do ensino superior, e requalificará o nosso discurso sobre a escola como direito social.
Ao fazermos isso, fatalmente seremos levados a questionar o caráter universal das políticas públicas de educação e a indagar se esse caráter tem, historicamente, garantido o acesso e a permanência bem sucedida do negro na educação básica e no ensino superior.
Também seremos impelidos a buscar estatísticas para averiguar se a diversidade étnica existente em nossa sociedade está contemplada na escola pública e privada, na universidade pública, nos cursos de pós-graduação, entre o corpo docente e nos cargos de decisão das instituições de ensino superior. Aí, sim, estaremos efetivamente inseridos no debate sobre a educação brasileira e sua participação no quadro de desigualdades raciais apontado por várias pesquisas.3

Ao levarmos a sério essa questão e buscarmos construir estratégias de reversão do quadro de desigualdade social e racial, estaremos nos posicionando politicamente, e isso implica discordâncias, negociações, acordos e tensões. Mas, ao mesmo tempo, nos aproximaremos da comunidade negra e de suas reivindicações pelo direito à educação de qualidade, o que, além do acesso, inclui a permanência bem sucedida tanto na educação básica quanto no ensino superior.

Se é fato que a sociedade brasileira tem, historicamente, construído formas operacionais para discriminar o negro, já é passada a hora de essa mesma sociedade reverter esse quadro e construir estratégias de discriminação positiva, ou seja, ações afirmativas.

No seu livro Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade, Joaquim Barbosa GOMES (2001:40-41) esclarece que, do ponto de vista jurídico, as políticas de ação afirmativa podem ser compreendidas como uma criação pioneira do Direito dos EUA, a qual representou, em essência, a mudança da postura do Estado que, em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça e cor. Esse mesmo autor nos ajuda a entender que, atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais, como educação e emprego.

Dessa forma, é importante esclarecer que as ações afirmativas não se reduzem à concessão de cotas que promoveriam a igualdade de oportunidades de ingresso das minorias em determinados setores do mercado de trabalho e nas escolas. As cotas são apenas uma das estratégias de implementação dessas ações e, ao serem implantadas, desvelam a existência de um processo histórico e estrutural de discriminação que assola determinados grupos sociais e étnico/raciais da sociedade.
Talvez por isso elas incomodem tanto a sociedade brasileira, uma vez que ainda impera em nosso imaginário a crença de que somos uma "democracia racial". Ora, a realidade social e educacional dos negros e mestiços revelada pelas pesquisas mais recentes tem nos mostrado o contrário.

A demanda das cotas por alguns setores do movimento negro, do Estado e da sociedade civil mostra, também, a existência de um novo posicionamento da nossa sociedade frente à discriminação racial. Por isso, é preciso estar atento, acompanhando de perto a implementação dessas propostas e seus objetivos subjacentes.
A concessão de cotas é uma medida de caráter emergencial e provisório de correção de desigualdades. Ao estabelecê-las, a sociedade e o Estado devem comprometer-se com a implementação de outras políticas que visem à superação das desigualdades e à instauração da democracia entre os diferentes segmentos sociais e raciais.
A desativação dessa política, ao longo dos próximos anos, dependerá e muito do nosso compromisso na luta contra a discriminação racial e da implementação de estratégias efetivas, ou seja, de ações afirmativas na superação da desigualdade racial e social.
Por isso, quem deseja e se interessa em discutir questões concernentes à educação e à identidade negra não pode abster-se nem prescindir desse debate político e de todas as tensões e pressões que ele acarreta.

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