sábado, 2 de outubro de 2010

Como vejo a articulação entre educação e identidade negra? Nilma Lino Gomes

E qual é a importância da compreensão dessa questão para os(as) educadores(as) que atuam na educação básica? Ambas mantêm, entre si, uma relação complexa, uma relação que nos fala de dois processos que apresentam aproximações e distanciamentos, semelhanças e diferenças, avanços e recuos. Processos desenvolvidos pelo homem e pela mulher negra nos diferentes contextos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais.

A educação pode ser entendida como um amplo processo constituinte da nossa humanização e que se realiza em diversos espaços sociais: na família, na comunidade, no trabalho, nos movimentos sociais, na escola, entre outros. Como nos diz Carlos Rodrigues BRANDÃO (1981:10-11):

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar – às vezes a ocultar –, a necessidade da existência de sua ordem.

Existem diferentes e diversas formas e modelos de educação, e a escola não é o lugar exclusivo onde ela acontece e nem o professor e a professora são os únicos responsáveis pela sua prática. Contudo, apesar de considerar essa dimensão mais ampla e mais geral do processo educativo, este artigo privilegiará a educação que acontece no interior da instituição escolar. A escola é vista, aqui, como um espaço em que aprendemos e compartilhamos não só conteúdos e saberes escolares, mas, também, valores, crenças e hábitos, assim como preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade.

E a identidade? Como ela pode ser vista? Jacques d’ADESKY (2001: 76) destaca que a identidade, para se constituir como realidade, pressupõe uma interação. A idéia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu "eu", é intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros, em decorrência de sua ação. Nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, é negociada durante toda a vida, por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade socialmente derivada são formadas em diálogo aberto e dependem, de maneira vital, das relações dialógicas estabelecidas com os outros. Esse é um movimento pelo qual passa todo e qualquer processo identitário e, por isso, diz respeito, também, à construção da identidade negra.

É nesse sentido que entendo a identidade negra como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro interpela nossa própria identidade.

A identidade negra é também uma construção política. Por isso, ela não pode ser vista de forma idealizada ou romantizada. O que isso significa? Significa que, no contexto das relações de poder e dominação vividas historicamente pelos negros, no Brasil e na diáspora, a construção de elos simbólicos vinculados à uma matriz cultural africana tornou-se um imperativo na trajetória de vida e política dos(as) negros(as) brasileiros(as). Ser negro e afirmar-se negro, no Brasil, não se limita à cor da pele. É uma postura política. É importante que os educadores e as educadoras negros(as) e brancos(as) compreendam a radicalidade desse processo.

Enquanto dois processos densos, construídos pelos sujeitos sociais, no decorrer da história, nas relações sociais e culturais, a educação e a identidade negra estão imersas na articulação entre o individual e o social, entre o passado e o presente, e são incorporadas, ao mesmo tempo em que incorporam, à dinâmica do particular e do universal.

Nessa perspectiva, quando pensamos a escola como um espaço específico de formação inserida num processo educativo bem mais amplo, encontramos mais do que currículos, disciplinas escolares, regimentos, provas, testes e conteúdos. Deparamo-nos com diferentes olhares que se cruzam, que se chocam e que se encontram. A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las.

Sendo entendida como um processo contínuo, construído pelos negros e negras nos vários espaços - institucionais ou não - nos quais circulam, podemos concluir que a identidade negra é forjada também durante a trajetória escolar desses sujeitos. Nesse percurso, o negro e a negra deparam-se, na escola, com diferentes olhares sobre o seu pertencimento racial, sobre a sua cultura e a sua história. Muitas vezes, esses olhares chocam-se com a sua própria visão e experiência da negritude. Estamos no complexo campo das identidades e das alteridades, das semelhanças e diferenças e, sobretudo, das diversas maneiras como estas são tratadas.

No processo educativo, a diferença coloca-se cada vez mais de maneira preponderante, pois a simples existência do outro aponta para o fato de que não somente as semelhanças podem ser consideradas como pontos comuns entre os humanos. A diferença é, pois, um importante componente do nosso processo de humanização. O fato de sermos diferentes, enquanto seres humanos e sujeitos sociais, talvez seja uma das nossas maiores semelhanças.

Mas é importante lembrar que a identidade construída pelo negro dá-se não só por oposição ao branco, mas, também, pela negociação, pelo conflito e pelo diálogo com este. As diferenças implicam processos de aproximação e distanciamento. Nesse jogo complexo, vamos aprendendo, aos poucos, que a diferença estabelece os contornos da nossa identidade.

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