sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O QUE UM CURRÍCULO EMANCIPADOR NÃO PODE ESQUECER !!!

De onde vem a discussão sobre a diversidade?

Essa é uma pergunta que tenho escutado de forma recorrente durante as palestras e cursos que venho ministrando aos/às educadores/as. Algumas vezes, os professores/as me dizem: -Pois é, Nilma... Agora que a diversidade cultural chegou à escola não sabemos o que vamos fazer com ela.Essa afirmação já demonstra por si só o quanto o campo da educação ainda precisa avançar e compreender melhor o que significa a diversidade cultural. É verdade que a partir dos anos 90 a questão das diferenças vem ocupando um outro lugar no discurso pedagógico. Cada vez mais, a escola é impelida a ressignificar sua prática pedagógica de acordo com as profundas mudanças ocorridas nos últimos anos. A educação escolar está sendo chamada a superar uma visão psicologizante estreita que ainda faz parte da cultura da escola e que acaba delineando perfis idealizados de aluno/a e professor/a e a incorporar os avanços da própria psicologia e de outras ciências. Temos entendido que o estabelecimento de padrões culturais, cognitivos e sociais acaba contribuindo muito mais com a produção da exclusão do que com a garantia de uma educação escolar democrática e de qualidade. Isso não quer dizer que é só a partir desse movimento no campo da educação que a escola passou a conviver com a diversidade cultural. Esse é um dos perigos de se pensar a diversidade cultural como um tema transversal (que hoje está na moda). Muito mais do que um tema, a diversidade cultural é um componente do humano. Ela é constituinte da nossa formação humana. Somos sujeitos sociais, históricos, culturais e por isso mesmo diferentes. No caso da escola, a pergunta não deveria ser o que faremos com a diversidade mas, sim, o que temos feito com as diferentes presenças existentes na escola e na sociedade. Qual é o trato pedagógico que a escola tem dado às diferenças?Um outro equívoco é pensar que a luta pelo reconhecimento da diferença é algo próprio desse final de século. É fato que a globalização, as políticas neoliberais, o ressurgimento dos nacionalismos recolocam a questão da diversidade. Contudo, é importante ponderar que a luta pelo direito às diferenças sempre esteve presente na história da humanidade e sempre esteve relacionada com a luta dos grupos e movimentos que colocaram e continuam colocando em xeque um determinado tipo de poder, um determinado padrão de homem, de política, de religião, de arte, de cultura. Também sempre esteve próxima às diferentes respostas do poder em relação às demandas dos ditos diferentes. Respostas que, muitas vezes, resultaram em formas violentas e excludentes de se tratar o outro: colonização, inquisição, cruzadas, escravidão, nazismo, etc. Assim, a diversidade está colocada para a educação como um dado social ao longo de nossa história. Entendê-la é dialogar com outros tempos e com múltiplos espaços em que nos humanizamos: a família, o trabalho, a escola, o lazer, os círculos de amizade, a história de vida de cada um. Refletir sobre a escola e a diversidade cultural significa reconhecer as diferenças, respeitá-las, aceitá-las e colocá-las na pauta das nossas reivindicações, no cerne do processo educativo. E o reconhecimento das diferenças não é algo fácil e romântico. Nem sempre o diferente nos encanta. Muitas vezes ele nos assusta, nos desafia, nos faz olhar para a nossa própria história, nos leva a passar em revista as nossas ações, opções políticas e individuais e os nossos valores. Reconhecer as diferenças implica em romper com preconceitos, em superar as velhas opiniões formadas sem reflexão, sem o menor contato com a realidade do outro. Infelizmente, muitas vezes, encontramos entre os/as educadores/as opiniões do tipo "não vi e não gostei". Será que essa postura cabe ao/à educador/a? Essas afirmações não significam que estou defendendo uma total desorganização e que não existe nada que nos assemelha. Os homens e as mulheres, sem exceção, possuem aproximações e distanciamentos. Aproximam-se no que se refere ao uso da linguagem, a adoção de técnicas, à produção artística e criativa, à construção de crenças, à necessidade de estabelecer uma organização social e política, à elaboração de regras e sanções. Todavia, essas aproximações ou semelhanças se dão das maneiras mais diversas, pois não são as mesmas para todo grupo social. A existência de semelhanças, de valores universais e de pontos comuns que aproximam os diferentes grupos humanos não pode conduzir a uma interpretação da experiência humana como algo invariável. O acontecer humano se faz múltiplo, mutável, imprevisível, fragmentado. Essa é uma discussão sobre a diversidade cultural que precisa estar presente na escola. Uma visão e uma prática pedagógica que enxergue o outro nas suas semelhanças e diferenças não condiz com práticas discriminatórias e nem com a crença em um padrão único de comportamento, de ritmo, de aprendizagem e de experiência. A idéia de padronização dá margem ao entendimento das diferenças como desvio, patologia, anormalidade, deficiência, defasagem, desigualdade. O trato desigual das diferenças produz práticas intolerantes, arrogantes e autoritárias. E essa postura está longe do tipo de educação que os profissionais de educação vêm defendendo ao longo dos anos. A escola possui a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é possível o encontro das diferentes presenças. Ela é também um espaço sociocultural marcado por símbolos, rituais, crenças, culturas e valores diversos. Essas possibilidades do espaço educativo escolar precisam ser vistas na sua riqueza, no seu fascínio. Sendo assim, a questão da diversidade cultural na escola deveria ser vista no que de mais fascinante ela proporciona às relações humanas.Nós, profissionais da educação, somos profissionais da cultura e não de um padrão único de aluno, de currículo, de conteúdo, de práticas pedagógicas, de atividades escolares. Somos diferentes em raça/etnia, nacionalidade, sexo, idade, gênero, crenças, classe. Tudo isso está presente na relação professor/aluno/a e entre os próprios educadores/as. Nesse sentido, a reflexão sobre a diversidade cultural nos conduz a um repensar do papel do professor/a. A originalidade de cada cultura reside na maneira particular como os grupos sociais resolvem os seus problemas ao mesmo tempo em que se aproximam de valores que são comuns à todos os homens e à todas as mulheres. Porém, o fato de possuirmos valores comuns não nos torna idênticos, pois continuamos a ter uma maneira própria de agrupar e excluir diferentes elementos culturais. Cada construção cultural e social possui uma dinâmica própria, escolhas diferentes e múltiplos caminhos a serem trilhados. Descobrir os motivos dessas escolhas, entendê-los, analisá-los à luz de uma reflexão colada aos processos históricos e sociais da humanidade deveria ser uma das tarefas da escola e do educador/a.O trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige de nós o reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais. Avançar na construção de práticas educativas que contemplem o uno e o múltiplo significa romper com a idéia de homogeneidade e de uniformização que ainda impera no campo educacional. Representa entender a educação para além do seu aspecto institucional e compreendê-la dentro do processo de desenvolvimento humano. Isso nos coloca diante dos diversos espaços sociais em que o educativo acontece e nos convida a extrapolar os muros da escola e a ressignificar a prática educativa, a relação com o conhecimento, o currículo e a comunidade escolar. Coloca-nos também diante do desafio da mudança de valores, de lógicas e de representações sobre o outro, principalmente, aqueles que fazem parte dos grupos historicamente excluídos da sociedade. Educar para a diversidade é fazer das diferenças um trunfo, explorá-las na sua riqueza, possibilitar a troca, proceder como grupo, entender que o acontecer humano é feito de avanços e limites. E que a busca do novo, do diverso que impulsiona a nossa vida deve nos orientar para a adoção de práticas pedagógicas, sociais e políticas em que as diferenças sejam entendidas como parte de nossa vivência e não como algo exótico e nem como desvio ou desvantagem. Entretanto, a consciência da diversidade cultural não é acompanhada somente de uma visão positiva sobre as particularidades culturais. Por mais que ela se torne um fato cada vez mais presente da nossa vida cotidiana devido à maior proximidade com os modos de ser, de ver e de existir distintos, a consciência da diversidade nos coloca diante de impasses políticos, morais e teóricos de difícil equacionamento. Por isso, assumir a diversidade cultural significa muito mais do que um elogio às diferenças. Representa não somente fazer uma reflexão mais densa sobre as particularidades dos grupos sociais mas, também, implementar políticas públicas, alterar relações de poder, redefinir escolhas, e questionar a nossa visão de democracia. Será que estamos dispostos a aceitar esse desafio?

Referências Bibliográficas:
DAYRELL, Juarez (Org.) Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto; o processo de construção da identidade racial de professoras negras. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995.
GONÇALVES E SILVA. Petronilha Beatriz. Prática do racismo e formação dos professores. In: DAYREL, Juarez (Org.) Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Antropologia e educação: origens de um diálogo. In: Cadernos Cedes, Antropologia e educação, Campinas, n.43,1997,p.8-25.
LIMA, Elvira Souza. Estudos acelerados - alternativa temporária ou política educacional competente? In: Encontro nacional sobre estudos de aceleração no ensino fundamental. Brasília. Anais... Brasília, SE/FEDF, 1997,p.79-90.
MUNANGA, Kabengele (Org.) Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental, 1999.
Prof.a do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação/UFMG
07/09/1999
Diversidade Cultural e Fracasso Escolar
Azoilda Loretto da Trindadeazoildaloretto@ig.com.br

"Aos povos de ontem e hoje, que alguns tentam confinar às senzalas".

O embate, conflito, encontro, diálogo que emerge do contato entre diferentes grupos sociais, étnicos, de gênero, deficientes... no contexto escolar tem suscitado, não é de hoje, reflexões e estudos. No entanto, todas essas iniciativas são certamente marcada pela visão de mundo e lugar social de quem as formula e, também, influenciadas pelo momento histórico vivido.
Neste processo, os grupos que não atendem as expectativas valorizadas pela Escola tendem a ser culpabilizados pela não correspondência aos ideais escolares e assim geram explicações/justifificativas, "discursos competentes", a respeito dessa incompatibilidade: privação ou déficit cultural, psicológico, social, carência alimentar, carências generalizadas; questões de classe, etc.... Hoje, convivem com essas explicações, as questões relacionadas à Diversidade Cultural, que tanto assumem características mais progressistas como conservadoras, ou mescladas.

A Cultura em Foco

As questões culturais têm suscitado muitos debates, criação de centros de pesquisa e estudo, muito rebuliço ultimamente. Isso se dá pelo questionamento da hegemonia do Mundo e Cultural Ocidental, pela insurgência dos movimentos das Diferenças que reivindicam e lutam por visibilidade, audibilidade, por espaço político, por seu "lugar ao Sol". Entram em confronto com a visão euronorte americana do mundo, que privilegia o homem ocidentalizado, que comunga dos preceitos da "democracia" e liberalismo, que exclui ou hierarquiza valorativamente grupos diferentes dos seus membros hegemônicos.
Como conseqüência desses movimentos são criadas novas demandas sociais, políticas, que envolvam o conhecimento, manipulação, potencialização, massificação e uma série de ações que focalizam a Diversidade Cultural e a diversidade humana.

Fracasso Escolar

Conforme já foi dito anteriormente, o modo de conceber o significado do fracasso escolar está intimamente ligado a concepção de vida e de vida escolar de quem se propõe a analisá-la/entendê-lo. A nossa concepção segue o caminho que desnaturaliza o fracasso escolar, vendo-o como uma produção a serviço da exclusão e injustiças sociais e muito, muito raramente, como responsabilidade, culpa do usuário mais imediato da escola.
A escola, a despeito de tantos estudos, pesquisas, críticas, ainda é uma instituição do Mundo Ocidental, baseada em suas idéias de "individualismo, liberalismo, constitucionalismo, direitos humanos, igualdade, liberdade, governo pela lei, democracia, livre mercado, separação de Igreja e Estado" além da competitividade, do Capitalismo etc. ... Idéias estas que esse mundo tenta "universalizar" através, por exemplo, da escola.
Se tornarmos alguns valores do mundo Ocidental, como a meritocracia, a competitividade, o individualismo, a exclusão, a seletividade podemos inferir que a produtividade da escola reside justamente na sua improdutividade (como talvez diria Gaudêncio Frigotto). A produtividade da escola reside em produzir fracasso escolar, já que o "sucesso" escolar não é para todos.
Se tomarmos, porém, valores como direitos humanos, igualdade, democracia, diríamos que a escola, por não tratar ou saber tratar seus usuários com eqüidade, fracassa nos seus objetivos.
De um jeito ou de outro, o fracasso escolar não é intrínseco aos seus usuários (discentes), mas diz respeito às relações sociais tanto de ordem micropolítica quanto macropolítica. Ou seja, diz respeito a como a comunidade escolar se constitui e se relaciona entre si, com a sociedade mais ampla e com o Estado. Diz respeito às relações de poder entre grupos sociais. Se relações de poder, produção sócio-histórica não são dadas, não é natural, é construção.

Diversidade Cultural e Educação

Para nós, o que está em discussão agora não é a escola como produtora de fracasso escolar ou como fracassada em promover uma educação igualitária para todos sem distinção de raça/cor, etnia, gênero, orientação sexual, classe social, deficiência, ou qualquer diferença que seu usuário apresente.
O que está em jogo, para nós, é a construção de uma educação, de uma pedagogia que contemple a diversidade humana, com cultura, modos de ser, sentir e agir diferenciados. Uma educação, uma pedagogia, uma escola visceralmente comprometida com a Vida, com o prazer, com a felicidade, com o respeito às diferenças, com a transformação, com a alteridade.
O que está em jogo é uma educação que rompa com a clássica história do "Patinho Feio" (para dizer de forma mais leve), com o perverso processo de transformação de cisnes em patinhos feios. Uma que seja capaz de, não só com a razão mas com o coração, com todos os sentido e todo o corpo, permitir a existência e promover patos, cisnes, gansos, galos, galinhas,... e que esses se conheçam, se respeitem, se preservem, dialoguem, se mesclem, se hibridizem, sem, contudo, deixarem de ser eles mesmos.

Desconhecimento cria a idéia de uma "só África"

Iorubás, haussás, bornos, baribas. Para quem ouve pela primeira vez, essas palavras podem soar estranhas e sem importância mas, desde o século XVII, elas estão estritamente ligadas à história do Brasil e, de algum modo, contribuíram fortemente para moldar o país como o conhecemos atualmente. Se, para a maioria dos brasileiros, essas palavras não fazem parte do vocabulário, na África elas são sinônimos de diferenças: cada uma delas designa um povo com língua e costumes diferentes. Povos que, durante o período de escravidão, deixaram forçosamente o continente africano para fincar raízes em solo brasileiro. "Povos diversos que foram se formando ao longo de milhares de anos. Múltiplos povos com culturas diferentes", explica o pesquisador Valdemir Zamparoni, do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) e professor da Universidade Federal da Bahia.
Com a escravização, milhares de negros das mais variadas culturas acabaram se misturando e tiveram de passar a conviver juntos, criando laços de comunicação e de socialização. A historiadora Marina de Mello e Souza, em seu artigo "Destino impresso na cor da pele", relata que "ao serem arrancados de suas aldeias e transportados pelo continente africano rumo às feiras regionais e aos portos costeiros, os escravos de diferentes etnias misturaram-se, aprenderam a se comunicar, criaram novos laços de sociabilidade que se consolidaram durante os horrores da travessia atlântica, e se institucionalizaram no seio da sociedade escravista colonial, à qual foram inseridos à força, acabando por encontrar formas de integração".
Mas, para o pesquisador Henrique Cunha Júnior, que faz parte do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (NEINB - USP), esses povos já mantinham contato intenso antes do comércio e do escravismo no Brasil. "Os africanos tinham e têm imenso trânsito no interior do continente e externo a ele. Antes da vinda para o Brasil, eles já haviam navegado no Atlântico e no Pacífico. Tinham comércio com o Caribe e a China", diz.
Se já tinham contatos antes ou se intensificaram esses laços durante a viagem nos navios negreiros e aqui, não é o mais relevante. O fato é que milhares de negros vindos de várias partes da África aportaram em terras brasileiras - principalmente na Bahia e, como explica o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia, o maior número desses escravos pertencia a grupos do tronco lingüístico banto da África Centro-Ocidental, que inclui as regiões do Congo, Angola e Moçambique. "No interior de cada uma dessas grandes regiões contam-se dezenas de grupos étnicos que vieram para o Brasil no período colonial e imperial, até o fim do tráfico, em 1850", diz.
Segundo Reis, como esses escravos estavam concentrados na Bahia, identidades específicas foram reconstituídas ou construídas novamente. "Os falantes do iorubá viraram nagôs os do grupo gbe (fon, mahi e ewe, por exemplo) viraram jejes", compara. Na opinião do pesquisador, o reagrupamento dos negros no Brasil seguiu, sobretudo, a lógica do parentesco lingüístico.
Para Zamparoni - que trabalhou no Centro de Estudos Africanos, em Moçambique, durante três anos -, a primeira geração de negros vindos para cá guardou elementos de sua origem, mas as outras gerações já eram a síntese das várias culturas. "O candomblé praticado no Brasil é diferente dos cultos aos orixás que acontecem na Nigéria. Ele é fruto das criações culturais daqui", explica.
Mas, não foi somente no Brasil que diferentes povos tiveram de conviver. Por causa do processo de colonização do continente africano, que teve início no século XIX, grupos étnicos diferentes tiveram de viver no mesmo país, contribuindo para uma enorme diversidade cultural em cada Estado africano. "O desenho político dos países africanos foi feito seguindo a geografia do colonialismo, daí que grupos étnicos historicamente rivais foram colocados no interior de fronteiras culturalmente artificiais, assim como grupos mais ou menos homogêneos foram divididos por essas fronteiras", afirma Reis. "Populações que, muitas vezes, não eram amigas no passado, acabaram obrigadas a conviver dentro do mesmo Estado. O resultado disso é a instabilidade política de muitos países", acrescenta Zamparoni.
Falta de conhecimentoSe tanto no Brasil como em cada Estado africano há tamanha diferença cultural, porque muitos vêem a cultura africana como homogênea e têm a visão de uma só África? Parte dessa visão equivocada é decorrente do próprio sistema educacional brasileiro, que não inclui estudos sobre a África e os escravos que vieram para o Brasil. "Esse processo de exclusão da história africana da cultura nacional faz parte das políticas de desigualdades de classes produzidas pelo escravismo e pelo capitalismo racista", explica o pesquisador Cunha, em seu artigo "A inclusão da história africana no tempo dos parâmetros curriculares nacionais".
Segundo o pesquisador, "as percepções sobre o passado africano são desinformadas e racistas, e associadas às noções de raça, tanto no cotidiano da sociedade como na educação, produzem um processo de representações desfavoráveis à percepção igualitária e cidadã dos afrodescendentes".
Para Zamparoni, esse processo de homogeneização da cultura africana está relacionado a outros mais antigos. Segundo ele, nos primeiros contatos, os europeus já puderam perceber que os africanos pertenciam a povos diferentes, com culturas e hábitos diversos. "Mesmo assim, nada impedia os europeus de falarem sobre os hábitos dos negros, usando julgamentos depreciativos", diz. Quando começa o tráfico de escravos, que se torna mais forte a partir do século XVII, acontece um processo de desumanização, na opinião do pesquisador. "Havia aqueles senhores de escravos e os traficantes que conheciam as características de cada povo. Mas, o negro passou a ser tratado como unidade. Não se falavam mais de pessoas, mas de peças", afirma.
No século XIX, com o discurso do racismo científico, esse processo se acelera ainda mais. "A tese de raça abstrai as diferenças culturais e busca denominadores comuns", diz Zamparoni. Os traços culturais são deixados de lado e o que pesa é apenas o fundamento biológico. "Esse é o grande discurso homogeneizador e desumanizador", ressalta ele.
Em outras palavras, os escravos eram vistos como "peças" iguais. Com a tese do racismo científico, todos os negros passam também a ser vistos como iguais. "E passa, então, a existir a idéia de que existe uma África só."
A imagem de um continente africano semelhante a que é mostrada em filmes como Tarzan e a idéia da uniformidade cultural são, na opinião de Zamparoni, fruto do desconhecimento, racismo e de "uma própria ignorância".
Parte integrante para esses pesquisadores, as diferentes culturas africanas não apenas influenciaram, mas foram parte integrante daquilo que hoje definimos como cultura brasileira.
"Os escravos foram 'os pés e as mãos' não só dos senhores, mas do Brasil. Do ponto de vista da cultura, deixaram a marca por toda a parte porque a escravidão existia por toda parte. É difícil encontrar um setor da cultura em que a mão e o pensamento africano não tenham tocado", diz Reis.
Cunha vai mais além. "Tudo, absolutamente tudo que é cultura brasileira durante o escravismo criminoso foi fruto de africanos afrodescendentes. As tecnologias, todas", diz. Como exemplo, ele cita as agriculturas comerciais tropicais, que eram conhecidas dos africanos, e as fundações de ferro, geridas com o conhecimento africano. "Mesmo a fauna e flora brasileira foram modificadas pelos africanos. Temos animais e plantas trazidos por eles. A bagagem africana é muito rica", completa.
"É impossível pensar como influência, mas sim como fundamento da cultura brasileira", explica Zamparoni. "Somos herdeiros das várias culturas africanas", diz. Nesse sentido, ele destaca a importância de estar consciente disso. "O Brasil não vai se conhecer enquanto não estudar as culturas africanas e não as tratar com respeito."




Atualizado em 10/11/2003
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