quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Fique atento !!!

A cultura negra em sala de aula

ERROS
• Abordar a história dos negros a partir da escravidão.
• Apresentar o continente africano cheio de estereótipos, como o exotismo dos animais selvagens, a miséria e as doenças, como a aids.
• Pensar que o trabalho sobre a questão racial deve ser feito somente por professores negros para alunos negros.
• Acreditar no mito da democracia racial.

ACERTOS
• Aprofundar-se nas causas e conseqüências da dispersão dos africanos pelo mundo e abordar a história da África antes da escravidão.
• Enfocar as contribuições dos africanos para o desenvolvimento da humanidade e as figuras ilustres que se destacaram nas lutas em favor do povo negro.
• A questão racial é assunto de todos e deve ser conduzida para a reeducação das relações entre descendentes de africanos, de europeus e de outros povos.
• Reconhecer a existência do racismo no Brasil e a necessidade de valorização e respeito aos negros e à cultura africana.
Texto retirado da Revista Nova Escola

Importante: ler ,discutir e transformar coletivamente nossa sala de aula !!!



ESCOLA: ESPAÇO PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA
ELISÂNGELA MARIA DE JESUS



Este artigo tem como objetivo analisar as relações de preconceito existentes para com a criança negra no espaço social da escola, tendo como base autores que possuem um arcabouço teórico e anos de pesquisa sobre o tema. Faz-se necessário a partir do estudo das obras destes autores, analisar como atitudes de preconceito étnico comprometem a identidade e auto-estima da criança negra, podendo levá-la a um processo de exclusão social.
Segundo Cavalleiro, a interface racismo e educação oferece possibilidade de colocar num mesmo palco a importância de duas temáticas: Função social da escola e diversidade cultural. Quando analisamos as relações raciais dentro da escola, questionamo-nos até que ponto ela está sendo coerente com a sua função social quando se propõe a ser um espaço que preserva a diversidade cultural, responsável pela promoção da eqüidade.
Para a pedagoga e socióloga Alice Itani, professora de sociologia da UNESP/Rio Claro, o preconceito étnico faz parte do comportamento cotidiano. Ela afirma em seu artigo “Vivendo o preconceito em sala de aula”, escrito em 1998, que os negros se defrontam constantemente com atitudes preconceituosas, sejam em atos ou gestos, discursos e palavras. Itani ressalta que o preconceito étnico é o que mais está presente na sociedade brasileira e, conseqüentemente, na prática escolar.
A escola é responsável pelo processo de socialização infantil no qual se estabelecem relações com crianças de diferentes famílias o que favorece a construção da identidade da criança. Esse contato poderá fazer da escola o primeiro espaço de vivência das tensões raciais.
A relação estabelecida entre crianças brancas e negras numa sala de aula pode acontecer de modo tenso, ou seja, segregando, excluindo, possibilitando que a criança negra adote em alguns momentos uma postura introvertida, por medo de ser rejeitada ou ridicularizada pelo seu grupo social.
O discurso do opressor pode ser incorporado por algumas crianças de modo maciço, passando então a se reconhecer dentro dele: "feia, preta, fedorenta, cabelo duro", iniciando o processo de desvalorização de seus atributos individuais, que interferem na construção da sua identidade de criança.
Por isso educadores precisam estar atentos aos valores étnicos, procurando estudar mais sobre a questão das crianças afro-descentes, favorecendo o contato entre os pares de modo que se estabeleçam relações mais harmoniosas.

PRECONCEITO ÉTNICO NA ESCOLA
A ausência do componente negro na escola priva as crianças negras de conhecerem a sua história, que vai muito além da escravidão, a escola necessita com urgência reformular conteúdos e problematizar a questão do negro no contexto escolar. Dando a conhecer a diversidade cultural da criança negra, criando possibilidades de conhecimento da sua cultura.
Eliane Cavalleiro, paulista, pedagoga que fez mestrado com a tese “Do silêncio do Lar ao silêncio Escolar: Racismo, Preconceito e Discriminação Racial na Educação Infantil”. Em sua pesquisa, realizada durante oito meses em três salas de aula de uma escola municipal de educação infantil, em São Paulo, Cavalleiro constatou:

Há todo um aparato para representar e valorizar a criança, a família e o profissional branco e não há o mesmo em relação ao negro. O que mais me chamou a atenção foi o jeito debochado dos professores no contato com a criança negra. Facilmente esses alunos são chamados de “filhotes de São Benedito” ou “cães em figura de gente”. Esses comentários não costumam ser diretos, mas é comum que um professor fale para outro, quando a criança está passando. Eles se divertem se percebem que ela ouviu. (CAVALLEIRO, 2001, p. 38)

Assim, não fica difícil perceber o lugar do negro no espaço escolar. Muitas crianças acabam resignando-se a esse não reconhecimento a ponto de se avaliarem de maneira distorcida, considerando-se incapazes, inferiores e, ao menor sinal de dificuldade, abandonam o processo escolar. Criando o ciclo vicioso, que perpassa as gerações das famílias afro-descentes.
Em outra pesquisa realizada com crianças de uma escola pública de Campinas, Cavalleiro (2001) investigou como eram estabelecidas as relações entre crianças negras e brancas em uma sala de aula. Foi observado que os dois grupos se relacionavam de modo tenso, segregando-se, excluindo-se. A criança negra mantinha-se em uma postura introvertida, recusando-se em muitos momentos a participar das atividades propostas, com medo de que os outros rissem dela, ou seja, para não ser rejeitada ou ridicularizada, ela preferia calar a sua voz e sua dor. Isso ilustra quanto uma situação social pode silenciar as crianças negras, reduzindo-se as a um estado quase de mutismo e invisibilidade em sala de aula, levando-as a um profundo desconforto e sofrimento.
Numa das atividades propostas em sala de aula, foi solicitado às crianças que falassem sobre si mesmas em uma redação. A criança negra se auto referia de modo depreciativo, descrevendo-se a partir do discurso dos seus colegas: “feia, preta, fedorenta, cabelo duro”. As meninas negras não se sentiam desejadas pelos meninos como as outras colegas que tinham um cabelo liso e grande.
Em outra pesquisa, realizada em escolas de Belo Horizonte, Rita de Cássia Fazzi, doutora em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), no livro “O drama racial de crianças brasileiras – Socialização entre pares e preconceito”, afirma:

A ênfase dada pelas crianças ao aspecto estético, distinguido entre o que é feio e o que é bonito, sugere o desenvolvimento do preconceito racial, visual, provavelmente através de pistas verbais quando da aquisição de padrões de beleza. Desde muito cedo a criança aprende, por exemplo, que cabelo liso é cabelo bonito, e esse padrão é reforçado, uma vez que parecem ser raros, senão inexistentes, elogios ao cabelo crespo durante a infância. (FAZZI, 2004, p. 117)

Desta forma, a criança negra poderá incorporar esse discurso e sentir-se marginalizada, desvalorizada e excluída, sendo levada ao falso entendimento de que não é merecedora de respeito ou dignidade, julgando-se sem direitos e possibilidades. Esse sentimento está pautado pela mensagem do outro que é transmitida às crianças negras e aprendida muito cedo pelas crianças brancas, de que para ser aceita é preciso corresponder às expectativas do padrão dominante, ou seja, ser branco.
A contradição do preconceito étnico numa sociedade pluricultural e pluriétnica precisa ser estudada e refletida na perspectiva de construção de identidade, pois ela se constrói na relação com o outro.
Desta maneira, podemos analisar as relações étnicas num dos espaços de superestrutura do país – a escola – e como esta contribui para a formação da identidade das crianças negras, considerando que o início da fase escolar é o momento no qual mais facilmente as crianças incorporam as mensagens que lhe são transmitidas pelos colegas e preceptores, pois é nesse espaço que elas testam suas relações e conjuntos de valores, atitudes, comportamentos, crenças e noções étnicas apreendidos em outros lugares, como na família.
A escola é o ambiente onde os grupos sociais estão em constante diálogo e conflito, sob o desafio do respeito à diversidade. O ambiente escolar para a criança negra pode ser o espaço para a sedimentação da sua identidade, cuja construção se inicia no seio familiar; ou ainda, pode vir a ser o palco onde a construção da identidade nega suas raízes étnicas, caso se confronte com relações de exclusão.
O cotidiano escolar pode demonstrar a (re) apresentação de imagens caricatas de crianças negras em cartazes ou textos didáticos, assim como os métodos e currículos aplicados, que parecem em parte atender ao padrão dominante, já que neles percebemos a falta de visibilidade e reconhecimento dos conteúdos que envolvem a questão negra.
Essas mensagens ideológicas tomam uma dimensão mais agravante ao pensarmos em quem são seus receptores. São crianças em processo de desenvolvimento emocional, cognitivo e social, que podem incorporar mais facilmente as mensagens com conteúdos discriminatórios que permeiam as relações sociais, aos quais passam a atender os interesses da ideologia dominante, que objetiva consolidar a suposta inferioridade de determinados grupos. Dessa forma, compreendemos que a escola tanto pode ser um espaço de disseminação quanto um meio eficaz de prevenção e diminuição do preconceito.
Percebe-se que a escola é o local das descobertas para a criança, e lá que ela aprenderá a conviver ou não com críticas, competições, perdas e realizações. Além disso, a escola é a instituição que ministra o conhecimento, o qual deve se basear em valores éticos e democráticos, pois a formação do cidadão consciente está em grande parte sob a responsabilidade da escola.
Por isso, os projetos pedagógicos deveriam expressar e dar sentido democrático à diversidade cultural presente no espaço escolar, reconhecendo e valorizando estas culturas e ensinando aos educando a respeitarem a cultura do outro, como aponta o professor Neidson Rodrigues, doutor em educação pela PUC/SP e mestre em filosofia das ciências, pela USP:
Ter uma escola democrática significa desenvolver uma educação escolar que compreenda as diversas interferências e interesses que perpassam a sociedade e que organize o ensino de forma a levar o educando a compreendê-lo e a compreender o papel de cada um, individualmente, e o de cada grupo organizado, para poder interferir nas ações dessa sociedade. (RODRIGUES, 1988, p.60).
Deste modo a escola abrange os interesses da sociedade, isto é, ela não é fechada em si mesma66é fechada em si mesma. Segundo Nilma Lino Gomes (2004, p. 105), “se concordamos que a escola é um direito social, temos de avaliar seriamente se ela de fato tem sido assim para negros e brancos”. A adoção de políticas de ação afirmativa para o povo negro no Brasil não pode ser confundida com paternalismo. Na opinião da autora, trata-se de justiça social.

CRIANÇA NEGRA: A IMPORTÂNCIA DA SUA IDENTIDADE

Para algumas crianças negras a dificuldades de auto-aceitação decorre de um possível comprometimento de sua identidade com as atribuições negativas de seu grupo social. O que acontece, sobretudo com as crianças, que estão em processo de desenvolvimento emocional, cognitivo e social, é uma internalização do discurso alheio.
Em outras palavras, é pelo olhar do outro que alguém se constitui como sujeito e é a qualidade desse olhar que contribui para o grau de auto-estima de qualquer indivíduo, seja ele branco ou negro.
A escola é o lugar onde a criança desenvolve a capacidade de questionar, ter consciência de sua identidade e a qual grupo pertence, pois é esta consciência que abrirá o caminho na busca da construção da identidade e provocará uma revolução no jeito de pensar do homem moderno. A escola precisa estar bem preparada para acolher a pluralidade étnica e cultura, pois “sabe-se que nossas escolas se norteiam pelos valores da classe média. Neste sentido, uma criança de classe baixa tende a ser menos ajustada...” (RAPPAPORT, 1982, p.100)
O processo educativo pode ser uma via de acesso para a criança negra ao resgate de sua identidade, auto-estima e autonomia, pois a escola é o ponto de encontro e embate das diferenças étnicas, podendo ser instrumento eficaz para diminuir e prevenir o processo de exclusão social e incorporação do preconceito pelas crianças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALLEIRO, E. Educação anti-racista: compromisso indispensável para um mundo melhor. In: Cavalleiro (org) Racismo e anti-racismo na educação. São Paulo: Summus, 2001.

CAVALLEIRO, E. Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: Racismo, Preconceito e Discriminação na Educação Infantil. São Paulo: Contexto, 2000.

COSTA, J. F. "Da cor ao corpo a violência do racismo" In: Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal

FAZZI, Rita de Cássia. O Drama Racial de Crianças Brasileiras: Socialização entre Pares e Preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
FERREIRA, R.F. Afro-descendente, identidade em construção, São Paulo: EDUC Rio de Janeiro: Pallas, 2000.

ITANI, Alice; AQUINO, Júlio Groppa. Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998.
RODRIGUES, Neidson. Da mistificação da escola a escola necessária. São Paulo: Cortez, 1988.
Elisângela Maria de Jesus
Publicação: www.paralerepensar.com.br - 10/07/2006



Estatuto da Igualdade Racial :serve a quem???


Burguesia aprova um inútil Estatuto que não garante qualquer Igualdade Racial


Nenhuma legislação dará ao negro absolutamente nada que tenha importância que não tenha sido conquistado através da sua luta, ou seja, da luta massiva e revolucionária do povo negro em aliança com a classe operária brasileira.
Foi aprovado no último dia 9 na Câmara dos Deputados o Estatuto da Igualdade Racial. A proposta, com o texto final aprovado e apoiado por DEM, PP, PT, CUT, SEPPIR, entre outros, restou completamente esvaziada de igualdade racial, ou de reparação para o povo negro.

Da “sonho” à realidade

O Estatuto da Igualdade Racial foi apresentado originalmente, no ano de 2000, pelo senador Paulo Paim (PT/RS), hoje uma das lideranças do governo dentro do parlamento.
No texto inicial, foram acrescidas demandas do Executivo Federal e outras propostas, fazendo com que o mesmo perdesse as características progressivas que continha.
Quando de sua apresentação, o texto chegou a ser saudado por setores do movimento negrocomo tendo alguma relevância especial para a população negra do Brasil, chegando a ser considerado por alguns uma concretização da abolição da escravatura.
Esta situação refletia uma ilusão constantemente disseminada pela burguesia e seus agentes no interior do movimento operário e popular de que as reivindicações dos explorados podem ser atendidas pelo apodrecido Congresso das máfias políticas da burguesia, quando na realidade cada uma das conquistas mais elementares dos negros e da classe operária foram resultado direto de suas lutas.
Tendo sido apresentada no Senado Federal (onde os escândalos políticos são rotina) a proposta de estatuto foi sofrendo baixas em cada comissão legislativa que passou. Os eternos “debates democráticos” em torno da proposta realizados pelo Brasil afora foram por água abaixo a cada aprovação negociada entre as lideranças partidárias nas comissões temáticas.
Após vários relatórios, substitutivos, emendas, requerimentos, propostas ministeriais, adequações governamentais, partidárias, interesses da oligarquia e audiências públicas, Paim, já em desespero, implorava para a aprovação do projeto do “jeito que está”, bem como PSOL e PC do B. Eis que ao chegar à Câmara dos Deputados (depois do filtro político e racial do Senado Federal) a proposição já era rejeitada por boa parte do movimento negro, que declaravam sua posição a respeito em um Manifesto em Defesa dos Direitos e da Autonomia Política da População Negra, o qual assinalava que “o Estatuto da Igualdade Racial [que] se inscreve neste contexto como parte da nossa luta histórica... Após quase uma década de tramitação no Congresso Nacional”... foi “alvo de ataques que o desfiguram completamente! (...)
Neste momento, interesses eleitorais estimulados pela proximidade de 2010, têm provocado articulações e composições espúrias que utilizam nossas conquistas como moeda de troca. Daí o esvaziamento dos conteúdos de justiça racial do Estatuto, o que impõe retrocessos, injustiças e a perpetuação de violações de direitos fundamentais da população negra.”
E concluem: “repudiamos as negociatas que envolvem partidos de direita e de esquerda. Repudiamos os retrocessos”.

Totalmente desfigurado

Esse repúdio ficou justificado quando se tinha (e se tem) o texto do Estatuto em mãos. Antes da votação (obstruída e depois articulada com o DEM) o projeto não obrigava o Poder Público a nenhuma ação objetiva, e a constante repetição do termo “fica autorizado”, além dos “poderão criar” denota que os governos não estaram obrigado a nada, mas apenas farão o que quiserem ou forem forçados a fazer por força da mobilização popular.
No texto, as cotas viram um fiasco democrático, os territórios quilombolas não são reconhecidos em nenhum aspecto e não há recurso para a implementação do estatuto (foi retirado o fundo de recursos financeiros).
Além do mais um dos “direitos compensatórios” deste Estatuto, segue como os demais direitos recentemente estabelecidos, prevendo incentivos fiscais para empresas que contratem negros, por exemplo. Ora, fornecer dinheiro (ou isenção) para os patrões em troca de direitos que teriam de estar assegurados por força da lei é um fracasso político total.
Assim o artigo 45 do Estatuto aprovado pela Câmara dos Deputados estabelece que “o Poder Público poderá disciplinar a concessão de incentivos fiscais às empresas com mais de vinte empregados que mantenham uma cota de, no mínimo, vinte por cento de trabalhadores negros.” Pode-se perceber que mesmo nesse artigo está o comando “poderá”, tornando o tal incentivo um negócio capitalista, disfarçado de caridade.
Está previsto também o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, de adesão facultativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios: adere quem quiser. O Estatuto ainda prevê a construção de Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial.
Na completa imagem e semelhança de outros conselhos, comissões tripartites e secretarias, esse fórum certamente vai padecer de estrutura, recursos físicos, orçamento, e poder deliberativo, se tornando um apêndice morto perante as prioridades do Governo Lula e dos seus sucessores junto ao empresariado e latifúndio nacional, podedo ser simplesmente ignorado.
Sobre a saúde da população negra, o estatuto prevê um Programa Nacional de Saúde da População Negra, um pomposo título vazio de conteúdo prático, e que expressa apenas a ausência de uma política de saúde pública para a maioria da populaçao brasileira que é negra ou mestiça e que nos últimos anos o Governo não assumiu nenhuma responsabilidade com o tema, e dificilmente o fará com a aprovação deste Estatuto.

Ainda assim, atacado pela direita

Mesmo totalmente desfigurado, esse arremedo de Estatuto foi rejeitado pelo Democratas (DEM) e pelo Partido Progressista (PP), que consideraram os dispositivos inócuos do Estatuto uma “racialização” da sociedade, e que – por exempo a mera definição de terrenos quilombolas poderia auferir direitos para este povo no sentido de questionar as propriedades de terra. Além disso, a questão quilombola já está sendo contestada pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN'S) apresentadas pelo DEM e PSDB, que também questionam as cotas.
A questão da terra e das cotas são os principais motivos da direita parlamentar não apoiarem a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial. Porém, acima de tudo, tivemos uma completa inoperância proposital do Governo Lula para a titulação das terras remanescentes de quilombos (medida já prevista no Decreto 4487/2003).
Assim, como em outras ocasiões, o DEM e o PP obstruíram as votações até que seus desejos fossem atendidos: foi extirpado o percentual de cotas para negros em universidades; cotas para negros em televisão e filmes; definição de quem eram os remanescentes de quilombos; e a exigência de o SUS identificar pacientes no atendimento pela raça.
Fora isso, outras tantas disposições do Estatuto já estão previstas em legislação especial, como é o caso da obrigatoriedade do ensino da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", já previsto na Lei 10.639/2003, que possui raríssimos casos de aplicação prática e, confirmam a pouca ou nenhuma serventia de depositar as esperanças da população explorada e das suas lutas nas mudanças legais.

Demagogia

O governo pretende sancionar esse estatuto no dia 20 de novembro, em virtude do Dia Nacional da Consciência Negra, e, assim, fazer da aprovação deste Estatuto uma plataforma eleitoral para as eleições de 2010, custe o que custar.
E caro foi o preço cobrado pela extrema direita do parlamento que rejeitou todas as medidas paliativas do estatuto no que tange o combate à desigualdade racial. Essa é a praxe do Congresso Nacional com todas as propostas que mesmo de longe apresente qualquer dispositivo progressista.
Incrivelmente há quem defenda este Estatuto no molde em que está. Maria Júlia Nogueira, secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT, depois da aprovação pela Câmara dos Deputados, afirmou que o estatuto da igualdade racial é uma “conquista social para os brasileiros”.
No mesmo sentido, o ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Edson Santos, afirmou que era um “marco histórico” a aprovação do estatuto.
Os representantes do governo vão bradar aos quatro cantos que este Estatuto representa alguma coisa para a população negra, quando na verdade não passa de um engodo vazio. Existem ainda algumas sequazes vozes do governo afirmando que nas eleições de 2014 haverá cota de 10% de negros na composição do parlamento federal, distrital ou estadual, pois assim reza o Estatuto.
É sempre bom lembrar que a "lei das cotas" (Lei 9.100/1995) obrigava os partidos a reservarem 20% das vagas para as mulheres. A cota foi ampliada para 30% na atual lei eleitoral (lei 9.504, de 1997), mas esse quórum simplesmente não é cumprido e a imensa maoria de candidatas mulheres servem apenas de degrau para a eleição de uma esmagadora maioria de homens.
Mesmo nesta questão, o estatuto tem redação análoga à antiga lei, obrigando os partidos a reservar uma minoria de vagas para os negros, maioria na sociedade, mas sem nem mesmo precisar preenchê-la; basta reservar.
Comemorar a aprovação de um estatuto desses é não considerar seu teor, seu objetivo ilusório, e esquecer que ele ainda volta ao Senado Federal, por conta das alterações – podendo sofrer novas impugnações – para , em seguida, ir à sanção do Presidente Lula.

Para que serve esse estatuto?

O Estatuto como está é um ataque ao movimento negro visto que as medidas lá previstas não atingem minimamente a classe rica, a burguesia racista e opressora.
Ao final, esse estatuto será usado apenas para tentar amenizar a crise da burguesia e do próprio congresso, que necessita fazer pequenas concessões, mesmo que formais, que procurem encenar que o parlamento ainda tem alguma serventia para a população negra e os explorados de um modo geral.
Mesmo que houvesse medidas importantes para a população negra no começo das discussões do estatuto, essas foram usurpadas pelos urubus congressistas, tendo servido apenas para desmobilizar um movimento que foi enganado com a ilusão de que seria possível ter um avanço por meio da “pressão” favorável à sua aprovação.
Como em muitos outros episódios, o apoio do movimento negro a estas manobras burguesas serviram apenas como um “cheque em branco”, para ser preenchido pelo parlamento fazer o que quiser com as reivindicações ali contidas, dizer que atendeu as demandas populares, quand na vardade sepultou-as.

Outro caminho

Nenhuma legislação dará ao negro absolutamente nada que tenha importância que não tenha sido conquistado através da sua luta, ou seja, da luta massiva e revolucionária do povo negro em aliança com a classe operária brasileira.
Isso já ficou demasiadamente comprovado pela história de luta do povo negro e da classe operária em nosso país, onde todas as conquistas fundamentais foram resultado de intensa luta contra as classes opressoras e seus governos, desde os tempos do império.
Apesar da burguesia procurar demonstrar justamente o contrário, de que estas conquistas teriam sido resultado de concessões.
A força da mobilização dos negros é a única via e a única garantia para qualquer conquista verdadeira. Na sociedade atual – e ainda mais na etapa atual de crise histórica do capitalismo -, é absolutamente impossível lutar por medidas efetivas que realmente atendam às necessidades da população negra sem se chocar diretamente com os interesses de grandes capitalistas.
Nesse sentido, a luta por direitos iguais e verdadeiramente democráticos só pode se dar – para ser conseqüente - em torno de reivindicações contrárias aos interesses da burguesia, de forma revolucionária.
Para evitar que os negros sejam obrigados a abandonar ou desmoralizar suas reivindicações históricas, é preciso que o movimento negro tenha uma plataforma de luta, com reivindicações concretas que podem ou não ser aprovadas pelo Congresso Nacional na forma de projetos de lei, mas que, em qualquer dos casos, sirvam para continuar e ampliar a sua luta.
Texto retirado da net: CAUSA OPERÁRIA net/negros

Pense nisto...


Desigualdade e racismo no Brasil: eterno tabu
Roger Deff · Belo Horizonte (MG) · 7/2/2008


Falar de relações raciais no Brasil sempre constituiu um tabu principalmente pela forma como essas relações foram construídas ao longo dos tempos.O processo de escravidão, e a cultura que se estabeleceu graças a ele, deixou marcas profundas que repercutem ainda hoje.
Uma das razões para o aprofundamento do preconceito velado no Brasil é o fato de que a história relegou ao negro o papel de figura passiva, mera mão de obra escrava e, até pouquíssimo tempo, os livros didáticos ensinavam que o negro foi escravizado porque se adaptava melhor à situação de trabalho forçado, coisa que não aconteceu com os povos indígenas. Maior absurdo é que este tipo de impropério era ensinado como se fosse coisa séria.
A difusão de idéias como essa colaborou para que uma imagem menor do negro enquanto indivíduo fosse construída ao longo da história, e ajudou inclusive para que se firmasse uma idéia de incompetência em relação aos afro-descendentes. Este e outros fatores ajudam a entender as razões que levaram os negros desenvolverem uma baixa auto-estima em relação á própria etnia, o que não é de se surpreender.
Obviamente este perfil vêm sendo alterado principalmente entre os que tiveram acesso à educação formal e outros que encontraram formas alternativas de construção de suas identidades.
Aliás, outras formas de construção de identidade vêm em primeiro lugar, como as provenientes de movimentos como o hip-hop e a convivência em outros grupos intimamente ligados à cultura afro-brasileira tais como congado, capoeira e outros, todos eles capazes de conferir ao indivíduo uma fator identificador alternativo aos meios de comunicação.
O fato é que a influência do negro na cultura nacional recebeu um lugar de pouca importância em nossa história, isso quando aspectos culturais dos povos africanos não foram sistematicamente demonizadas e marginalizadas como no caso de manifestações religiosas como o Candomblé. Há uma grande dificuldade em confrontar tais afirmações com a opinião vigente, principalmente porque vivemos o eterno mito da “democracia racial”.
O país em que as raças "se irmanam" e convivem na "mais completa harmonia" e com igualdade de oportunidades, esconde um racismo velado, o que o torna mais difícil de ser combatido. Importante lembrar que a disparidade em termos de oportunidades não é apenas de cunho social e econômico. Não por acaso a dificuldade de acesso possui um perfil racial bem definido.
O Brasil é o país fora do continente africano que possui o maior número de afro-descendentes, sendo que estes constituem cerca de 45% da população brasileira e os mesmos constituem 64% da população mais pobre e 69% do total de indigentes.
Importante lembrar que estes 45% da população brasileira não encontram representação, nem de longe, equivalente nos meios de comunicação ou nos cargos considerados de maior prestígio.
O IDH – Indice de Desenvolvimento Humano – que mede a qualidade de vida das populações baseado em itens como alfabetização, riqueza e expectativa de vida – se mostrou alto no último relatório da ONU referente ao Brasil, entretanto o IDH da população negra manteve-se baixo, embora tenha apresentado um crescimento considerável se comparado ao relatório anterior.
Embora os avanços recentes tenham sido notáveis, eles ainda apresentam números tímidos mas vale ressaltar que algumas medidas importantes têm sido adotadas. Uma delas é a questão das ações afirmativas, a velha história das cotas para negros e indígenas. Independente das opiniões contrárias, elas cumprem um papel que é primordial para mim.
Pela primeira vez em muito tempo a questão racial foi discutida a sério na esfera pública, nos debates em programas de tv, nas universidades e nas ruas o que evidenciava que havia algo de muito errado em nosso país “livre de preconceitos”, a polêmica gerada pela adoção da medida contribuiu para que o tabu fosse deixado de lado e a discussão viesse à tona.
Um dos grandes passos recentes foi a inclusão do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas. O acesso a uma disciplina como essa ajuda na formação de uma visão mais ampla de cultura por parte dos alunos.
A matéria entrou oficialmente no currículo das escolas a partir de 2003, resta saber se existem profissionais capacitados em número o suficiente para suprir a demanda. Em todo caso já é um alívio saber que perceberam a necessidade de se levantar este tipo de discussão.
A lei em questão reza que seriam incluídos estudos sobre a história da África, luta dos negros no Brasil e o papel do negro na formação da identidade nacional.
Acho que ainda há muito o que conquistar mas é um passo importante para que os negros brasileiros sejam vistos como indivíduos que ajudaram a construir a visão de mundo de todo um povo e não apenas como figuras passivas cuja maior contribuição foi a mão de obra escrava.

Vale a pena conhecer nossa matriz africana!!!


As Religiões de Matriz Africana no Brasil Frente ao Contexto da Nova Ordem Mundial

O atual contexto internacional emerge de um longo período de fermentação de intolerâncias, perseguições e elevados níveis de racismo brutalmente desencadeado contra diversos povos e etnias vulneráveis. Estes racismos visivelmente se mostram articulados e armados contra as sociedades multi-étnicas e multi-culturais.
Paises como o Brasil na realidade Latino Americana, que já lidera o maior número de simpatizantes e atuantes neonazistas de norte a sul do país, necessitará perceber a gravidade desse contexto que se desenha a nível planetário, procurando encontrar soluções que venham coibir tal prática em solo brasileiro.
Este momento extremamente tenso para o Brasil, surge com o questionamento sobre a enorme diversidade pluri-cultural de suas populações e de suas condições frente ao processo de massificação e homogeneização advindas da globalização.
Momento este recheado de preocupação e temor, haja vista ser histórico, segundo Roger Garraudy no seu livro Por um diálogo das Civilizações, "a guerra cultural praticada contra o negro, que ainda nos dias atuais, permanece, renascendo de mil formas". "Por guerra cultural entendemos aquela feita de palavras, preconceitos, símbolos, insinuações, discriminações, humilhações. Enquanto as armas materiais amedrontam os corpos e às vezes as ferem e matam. As armas culturais penetram no próprio cerne social em que os corpos se movem, ferem as mentes e as idéias, se transmitem quase que automaticamente por gerações e envenenam o relacionamento humano de forma duradoura". (Silva)
Os questionamentos levantados tendo em vista as preocupações num processo de intolerância religiosa, xenofobia, discriminações raciais e outras formas conexas são implícitas, haja vista ser a comunidade negra associada aos judeus, nordestinos e homossexuais. Uma das maiores vitima desse processo, considerando nesse particular, ser o Brasil a segunda maior nação do mundo, após a Nigéria em população afro-descendente.
Diante do contexto, as preocupações se direcionam para a necessidade da preservação dos nossos costumes, principalmente os de origem religiosa frente ao fenômeno da globalização, bem como as condições atuais, os aspectos sociais, políticos e econômicos aos quais estão inseridos os afro-descendentes no Brasil.
Aspectos diversos estes que vem ao longo dos séculos nos fragmentando enquanto povo, sejam descendentes diretos e indiretos de africanos, vem a propósito, abrir uma ampla reflexão sobre os atuais problemas, pois emerge um chamamento quanto ao contexto social ao qual está sendo lançado o sentido religioso, em virtude de práticas abusivas e deturpadas que muitas vezes se estruturam enquanto argumentos contrários a nós, pois captados de forma maliciosa por setores inimigos que incitam a discriminação e a intolerância religiosa, tornam-se referencias fortíssimas para a cultura do racismo.
Ao nível de Brasil o conjunto dessas intolerâncias visivelmente articuladas através da violência física (eliminação de pessoas – negro, nordestino, judeu, homossexual...) e violência simbólica (perseguições e agressões a símbolos, signos e patrimônios culturais, materiais e imateriais) encontram conexão com uma ação que se estabelece ao nível de mundo, tendo alguns setores chaves como os seus maiores interlocutores.
A nível social no tocante a perseguição étnica, discriminação racial e xenofobia iremos perceber a visibilidades dos SKINHEADS, originários de uma dissidência do movimento PUNK nos anos 80. A partir de 1984 espalham-se por várias capitais brasileiras.
No final da década divergências ideológicas fragmentaram os SKINS numa série de grupos. Surgiram então os carecas do Brasil. Depois vieram os carecas do ABC e os carecas de Cristo que pregam a religião e a nacionalização da violência. Além destes, temos o WHITE POWER (poder branco), a facção brasileira ultranazista que veio dos SKINS e que mantêm intercâmbio com grupos semelhantes na Europa, Estados Unidos e América Latina.
Ao nível das relações religiosas no contexto social brasileiro, vamos perceber outros interlocutores que de um modo geral atuam na mesma freqüência dos primeiros, desenvolvendo um clima desrespeitoso, de incitamento ao ódio, de intolerâncias às cosmologias dos povos que estão fora do padrão estético cristão especificamente às religiões de matriz africana sempre associadas ao satanismo e a cultos demoníacos. Sendo eles as Igrejas cristãs em suas variadas confissões: Católica, Pentecostais, Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Deus é Amor.
Historicamente as religiões de matriz africana advinda das junções de várias cosmologias africanas em território brasileiro, sempre sofreram discriminações e perseguições de toda a ordem, até mesmo a policial. Sempre classificadas de primitivas e atrasadas, resultante de uma elaboração grosseira e mal feita atoladas no universo do barbarismo sem limites.
Mesmo tendo sido cessada as investidas policiais, a perseguição continua no nível ideológico, sendo assumida por interlocutores de poderosos impérios de mídia através de jornais e Tv’s onde é criado todo um conceito de imagens fraudulentas que operam mensagens racistas e mentirosas sobre as religiões de base africana junto ao imaginário social, toda essa sofisticação ideológica consegue respostas desejáveis nos extratos mais empobrecidos da população atingindo o ápice da visibilidade com os ataques promovidos pelas Igrejas Protestantes e Igrejas Eletrônicas, nas suas pregações estrondosas em praça pública usando a imagem de Jesus Cristo como um poderoso produto a ser comercializado e prescrito como possibilidade de exorcizar aqueles que vivem nas trevas – os adeptos das religiões afro-descendentes, classificados em todos os momentos sejam nos jornais e tv’s, jornais, em praças públicas ou mesmo no púlpito das suas igrejas em pregações inflamadas, de cultuadores do satanás, adoradores de diabo, homossexuais indecentes, pervertidos, prostitutas, imorais, viciados em drogas.
Além de toda essa violência verbal, construtora de imagens e referenciais negativos acertando em cheio a nossa dignidade enquanto sujeitos e coletivamente enquanto povo, provocando baixa estima, insegurança e intolerância no meio social, estamos vivendo a violenta profanação dos nossos espaços sagrados a onde grupos de protestantes sob a alegação de expulsar o demônio, estão invadindo terreiros e quebrando tudo o que encontram pela frente, em nome de Jesus Cristo. Em outros espaços de comunidade-terreiro de igual valor religioso, estão sofrendo ameaças de apedrejamento, invasão e promessas de cultos relâmpagos nas portas de entrada.
Toda essa configuração de incontáveis violências revela as intolerâncias historicamente verificadas Contra as tradições afro – descendentes nas suas mais variadas experiências como a capoeira, o samba, o candomblé, o tambor de Mina, e o bumba boi de matraca e zabumba no Maranhão. Verificações estas que traduzem o perfil de uma sociedade autoritária e perversa que não respeita as expressões dos diferentes, a onde a liberdade de culto e o livre exercício da fé é negado as populações afro-descendentes, dadas as condições desfavoráveis.
A comunidade-terrreiro e os descompassos com a modernidade
Considerando o contexto atual vivenciado pelo mundo, a onde os reflexos das intolerâncias, injustiças e perseguições refletem na vida daqueles mais vulneráveis os males da modernidade. A comunidade-terreiro nas suas variadas expressões de norte a sul do país (tambor de Mina no Maranhão e Pará, Xangôs do Recife, candomblés na Bahia, umbandas no Rio de janeiro e São Paulo, batuques no Rio Grande do Sul...) vive as agruras de um ingrato momento que se estreita cada vez mais contra nós se bifurcando em várias vias que se entrelaçam e deságuam como rios no mesmo estuário, ou seja, o modelo de desenvolvimento adotado no mundo capitalista afeta muitos aspectos da comunidade afro-descendente desde o período da colonização quando fomos relegados a não condição de humanos; homens e mulheres cidadãos – que por direito teriam as reparações sociais, que contribuíram em práticas efetivas de superação de exclusões haja vista toda a acumulação de riquezas conseguida pelo primeiro mundo em virtude de séculos de pilhagens sobre suas colônias historicamente exploradas.
De lá para cá a situação dos descendentes de africanos é de completa marginalização sócio-econômica: fome e analfabetismo, favelas palafitas, doenças, desemprego, violência policial. Uma situação igual ou pouco melhor que a do africano escravizado no século XIX. Do cativeiro até os dias atuais persiste um racismo contra os afro-descendentes de forma a entravar seu progresso dentro da sociedade.
Comungada com essa radiografia social vivenciada pelas populações negras em conexão direta com a realidade cotidiana das comunidades-terreiros, vamos perceber que além das estruturas econômicas e políticas estarem articulando mecanismos de eliminação física das populações (negras, indígenas, mestiças, de rua e velhos...). Já consideradas desnecessárias, não necessitando assim recorrer a pena de morte, porque outros instrumentos no atual estágio da globalização já a garantem na prática. As mesmas políticas no compasso da modernidade vão em nome de um suposto desenvolvimento empurrando as religiões de matriz africana para o isolamento e a extinção já que a base dessas religiões, se processa na territorialidade e na especialidade da natureza (mato, rio, pedras, folhas, mar, mangue e vento...) e seus ecossistemas que hoje estão totalmente comprometidos e ameaçados de todas as formas, resultado das políticas desenvolvimentistas irresponsáveis dos governos e a falta de consciência de preservação dos povos, uma situação que está levando o mundo para a catástrofe final, causada pela exploração irracional dos recursos naturais em troca de lucro sem limites e da ganância desenfreada de uma minoria que está tornando o nosso meio ambiente insuportável.
O conjunto desses problemas vai possibilitando o enfraquecimento do AXÉ – a concentração total de forças que vai se constituir na força originária de todas as forças, ou seja, como a nossa dinâmica se processa na soma equilibrada de energias plurais advindas da natureza em toda a sua complexidade, e sendo esta ameaçada de existir plenamente, já que a especulação imobiliária nos últimos quarenta anos vem aterrando mangues e desfazendo áreas de florestas, objetivando a construção de grandes impérios imobiliários a onde mares, rios e seus mananciais com todos os seus berçários de reprodução da vida aquática, vem sofrendo as agressões dos esgotos domésticos, hospitalares, industriais e toda a sorte dos acidentes marítimos que vão poluído as águas com derramamento de óleo. Sem falar na grande concentração de lixo de toda espécie nas encostas das "reservas".
Todo esse contexto configura-se em uma forma de agressão ao homem de maneira geral e em particular, é uma violação dos bens simbólicos, do acervo material e imaterial criando condições desfavoráveis a coletivadade religiosa afro-descendente no seu processo de afirmação e no exercício da sua cidadania religiosa.
As evidências em questão nos levam a crer que corremos o risco de desaparecer junto com a natureza, pois as cosmologias das religiões de matriz africana são concebidas num principio tridimensioanal simbiótico entre homem-natureza-fé, atuando de forma cíclica, a partir de um rigoroso código de conduta:
..." para cada ser nascido uma árvore deve ser plantada...
..."tirar uma folha de uma planta sem necessidade é o mesmo que matar uma pessoa...
..."a força de toda a natureza está dentro de mim e assim como eu tenho a natureza, a natureza tem a mim...
..."a floresta é um santuário sagrado, por isso não se entra ali sem lhe pedir permissão...
Dentro desse contexto, o ser humano é percebido, não como aquele que está acima da natureza, mas como aquele que faz parte e expressa as divindades naturais numa comunhão integrada com o universo, sendo a natureza a força contida em sua essência.
"O exercício da fé no contexto dessa religiosidade exige uma relação direta e estreita com o meio ambiente natural, já que essa crença privilegia o culto as forças da natureza, os antepassados, a vida e as relações inter-pessoais como sendo formas naturais de preservar um estilo de pensar, ser e estar no mundo.
Essas forças naturais são vivenciadas de acordo com o modelo mítico ou arquétipo, o qual comporta uma enorme variedade de expressões, enquanto a cidade fragmenta e produz o anonimato, os terreiros promovem uma visão solidária e integradora dos seres humanos entre si e com a natureza. Nesse contexto as águas estão associadas a feminilidade e as divindades Nanâ, Iemanjá, Oxum, Ewa, o fogo expressão de força viril, está ligado a Exu e Xangô; o ar (vento), corresponde como fertilidade e transformação, é associado a Oxalá e Iansã; a terra (matas, floresta, caminhos, estradas), a capacidade de sobrevivência e preservação animal e vegetal, bem como a transformação destes em favor do homem é remetida a Ogum, Oxossi, Ossaim e Obaluaiê". (Barros e Teixeira, 1989)
Enfim, aos olhos afro-descendentes a natureza como um todo, inclusive a existência do próprio homem é concebida com uma carga muito forte de sacralidade, quanto a espacialidade e a territorialidade habitada por forças e divindades naturais.
Problemas graves
Problemas resultantes de todas as formas de desequilíbrios provocados no decorrer no século XX foi refletido na vida diária do povo de santo, que se vê a cada dia que passa obrigado a deslocar-se para fora dos limites da cidade, a procura de locais e de espécies vegetais indispensáveis as suas práticas religiosas, haja vista que os "espaços de mato" estão cada vez mais escassos e agredidos por desmatamentos, queimadas, lixeiras e no dizer do povo de santo "sem folhas não há Orixá" ou ainda, não há Vodum, Orixá, Inkice, Caboclo sem terra, mato, rio, mar, pedra, arvores... porque o nosso axé vem da força vital que é a natureza...
Essa situação onera a vida material dos adeptos e favorece a implantação de um sistema paralelo – o comércio para a aquisição de bens (plantas) que antes estavam a disposição em áreas verdes. Na maioria das vezes, interfere também na vida espiritual dos participantes, ocasionando adiamento, e as vezes até a eliminação de certos itens rituais.
Proposições
Diante de todas as prerrogativas elucidadas nesse trabalho, torna-se imperioso o reconhecimento da importância da cultura religiosas de base africana, objetivando com isso o resgate, a preservação, a guarda e a defesa de todo o patrimônio cultural afro-descendente nos seus aspectos matérias e imateriais, principalmente na focalização de proposições que defendam a preservação dos territórios patrimoniais negros no resguardo de seus conhecimentos milenares nas diversas áreas do conhecimento. Assim como de todas as áreas ambientais de suma importância para a humanidade de uma forma em geral e principalmente para os adeptos das religiões de base africana, a onde preservar o que nos sobra ainda de natureza, é a mesma coisa que preservar as força do Vodum, do Orixá, do Inkice, do Caboclo, ou seja, preservar a natureza com todas essas forças é suplicar para que a força de Deus todo poderoso (Olorum) nunca se afaste de nós, pois os orixás, Voduns, Inkices e Caboclos são transmutações da força de Deus para todos os seus filhos.
Propostas
1. assegurar o desenvolvimento de programas que assegurem a igualdade de oportunidades e tratamentos nas políticas culturais da União, dos Estados e Municípios, tanto no que se refere ao fomento à produção cultural, quanto a preservação da memória de modo a dar visibilidade aos símbolos e manifestações culturais do povo afro-descendente brasileiro.
2. promover mapeamentos e condições que assegurem o tombamento de casas religiosas tradicionais de base africana a partir de critérios estabelecidos pela comunidade, objetivando a guarda e proteção da territorialidade cultural e religiosa afro-descendente.
3. promover ampliação da proporção geográfica das casas tradicionais de base africana, visando melhores condições físicas de desenvolvimento e resguardo de todo o potencial patrimonial das tradições afro-descendentes.
4. assegurar a inclusão no plano de direitos humanos, a proposição de legislação que defina e puna a intolerância étnico-religiosa, assim como os preconceitos e esteriotipos que estigmatizam as religiões de base africana de modo a dar cumprimento ao preceito constitucional que assegure o livre exercício da fé da coletividade afro-descendente.
5. promover políticas que assegurem o estabelecimento de reservas ambientais segundo os padrões estéticos originários das cosmovisões africanas, objetivando a guarda e proteção de seus ecossistemas, como patrimônios inalienáveis e de importância vital para a sociedade como um todo e principalmente para as religiões de matriz africana, garantindo desenvolvimento de plantio de árvores sagradas e ervas de uso medicinal litúrgico.
6. estruturar e organizar herbários etnobotânicos em consonância com as casas tradicionais das religiões de base africana, objetivando a produção de folhas e ervas sagradas para fins litúrgicos e terapêuticos.
7. assegurar a construção de escolas e bibliotecas, possibilitando melhores condições de desenvolvimento e aprendizagem dos conhecimentos milenares dos povos africanos resguardados nos territórios das casas religiosas tradicionais de base africana.
8. promover a inclusão dos assuntos afro-descendentes nos currículos escolares em todos os níveis da aprendizagem escolar e a formação de recursos humanos que consigam desenvolver os referidos assuntos.
9. retirar o conteúdo ensino religioso da grade curricular de ensino, transferindo a tarefa de desenvolver a referida área de conhecimento para as religiões de uma forma em geral, tendo em vista os seus públicos específicos.
Bibliografia
AFRO-BRASILEIRO, I Encontro Maranhense de Cultos Afro-Brasileiros / A prática do culto afro no Maranhão. In: Casa Fanti Ashanti – Documento nº 1 (1º EMCAB). 1994.
AFRO-BRASILEIRO, III Encontro Maranhense de Cultos Afro-Brasileiros / Religião, Sociedade e Identidade nos cultos Afro-Brasileiros. In: Casa Fanti Ashanti – Documento nº 3 (3º EMCAB). 1994.
BARROS, José Flávio Pessoa de e TEIXEIRA, Maria Lina leão. Terreiros de Candomblé Conservação da Vida e da Crença. Colóquio Dunia Ossain. In: SEDEPRON/Rio de Janeiro. 1992
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia. In: Ed. Brasiliense. 1986.
CASTRO, Moacir Werneck de Castro. A cultura globalizada. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 23.03.95
GARAUDY, Roger. Por um diálogo das Civilizações (1976)
GUIMARÃES, Claudia. O ovo da Serpente. In: Cadernos do Terceiro Mundo. Nº 146. Ano XIV – Dezembro 91 / Janeiro 92.
GLOCK, Clarinha. Os órfãos de Hitler mostram a cara. In: Atenção nº 1. São Paulo, SP: página aberta. 1995.
MACEDO, Donaldo e BARTOLOMEU, Lilia. O racismo na era da globalização. In: IBERNÓN, F. (org.). Ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. 2000.
NIETZCHE, Friedrich W. Os pensadores. Ed. Victor Civita. São Paulo, SP. 1983.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sankofa: Resgate da Cultura Afro-brasileira. Volume 1. In: Secretaria extraordinária de defesa e promoção das populações afro-brasileiras (SEAFRO) / Rio de janeiro. 1994.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, Etnia e estrutura nacional. São Paulo. Ed. Pioneira. 1976.
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SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves. 1988.
TAVARES, Rubens César Fernandes Ricardo. Os ventos do leste europeu sopram sobre o Brasil. In: Proposta nº 51. Rio de Janeiro, RJ. Outubro. 1991.
XAVIER, Arnaldo e SILVA, Nilza Iracy da. Há um buraco negro entre a vida e a morte. In: GELEDES, Instituto da Mulher Negra e SOWETO, Organização Negra. Rio de Janeiro / 1992.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

NOSSO RACISMO É UM CRIME PERFEITO

Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria [Terça-Feira, 18 de Agosto de 2009 às 15:15hs]
Fórum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o senhor? Kabengele - Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida. Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os negros não entram. A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polícia? Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso. Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira. Revista Fórum - Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso brasileiro é mais difícil combatê-lo... Kabengele - Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger. Revista Fórum - Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial? Kabengele - Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação. Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma grande parte da população brasileira. Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas. O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos EUA. Fórum - Que é o argumento do Demétrio Magnoli. Kabengele - Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, "negro, volta pra senzala". Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir. Fórum - Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a raiz dessa resistência? Kabengele – Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado. Fórum – Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo socioeconômico? Kabengele - É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. "Ah, é só mudar a escola pública." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica. E tem esse argumento legalista, "porque a cota é uma inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil". Há juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível. Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai decepcionar. Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi. A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no jornal. Fórum - O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas são formadas para aceitarem esse mito... Kabengele - O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la. Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda. Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil, vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa explícita. Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: "você que é complexado, o problema está na sua cabeça". Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema. Revista Fórum - O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista. Kebengele - Faz parte desse imaginário. O que está por trás que está fazendo uma ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade. Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade. Fórum - É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa. Kabengele - É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer. Fórum - O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação? Kabengele - Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a violência física é punida? Fórum - Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a questão racial? Kabengele - Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da educação no Brasil. Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola. O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação do brasileiro. Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso ajuda. É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que vão poder respeitar os outros. Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar. Fórum - Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso? Kabengele - O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê? Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso? 120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade. Revista Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial? Kabengele - A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola. Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito. Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado. Amanhã não se fala mais, acabou.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de agosto. Nas bancas.